CARTAS DE HUMOR
sexta-feira, 22 de março de 2013
quinta-feira, 21 de março de 2013
sábado, 14 de julho de 2012
sexta-feira, 22 de junho de 2012
ANIMAIS E BICHOS
Não sou
um severo defensor dos animais, muito embora acredite sermos todos responsáveis
por aqueles indefesos seres pastando sem ofender a qualquer um. Sim, não sou
ecologista, nem mesmo vegetariano. Quase toda sexta-feira desfruto de um
delicioso churrasco temperado no sal grosso e feito com carne fresca. Então por
que entrei no mérito de escrever esta crônica modesta, onde defendo os animais
da violência gratuita que permeia as diversões dos homens. Ora, eu digo em
instantes, mas primeiro quero devanear sobre a estupidez humana, tão em
evidência nesses dias modernos. Assim falo porque tenho escutado sobre
pesquisas estapafúrdias em que alguns animais não sentem dor. Ora, de que dor
falam? A dor do amor, talvez, e assim não me fazem acreditar em tamanha
asneira. A verdade é que os cavalos não amam? O sexo deles, soltos
nos descampados campos verdes, parecem ter mais sentido que o nosso nos
atribulados bailes funks. Mas não é de amor que pretendo falar, muito embora
esta substância andrógena inexplicável tenha uma severa relação com a dor.
É sobre a dor dos animais esta dissertação. As desculpas mais comuns nos levam a crer que os peixes não sentem dor. Uma imensidão de notícias torna a pesca atividade saudável e familiar. Mas experimente puxar um peixe de dentro do seu ambiente com um mortífero anzol e vê-lo debater-se até a exaustão. Verá, meu amigo, que até os animais desistem da vida. Chega um momento em que para de se debater, muito cansado, e se entrega ao seu destino sendo sufocado pela poluição humana. Eu não posso acreditar que os peixes pensam. Então por que lutam contra o anzol, se não sentem dor? Será que buscam desesperados a liberdade porque leram a carta política francesa? Ou ainda, será que mordem a isca porque invejam a estupidez dos pinces que infestam os corpos dos homens? Não, nenhuma destas idéias corrobora com a lógica natural. Os peixes sentem dor e muitas vezes, buscando escapar daqueles inconvenientes arames em suas bocas debatem-se até a morte.
Não pense nestes seres como apenas reserva natural posta à disposição do nosso prazer e gozo. Não quero saber se as baleias choram ou se os macacos aprendem lógica. Isso, de fato, não se assevera importante. Mas preciso fazer uma análise quanto ao fato de amarrando um cavalo pelo pescoço com uma corda poder trazê-lo facilmente. Então por que não é tão fácil com os peixes, se eles não sentem dor?
Dúvida profunda desdenha da minha alma pouco humana quando penso no contrário. Um homem poderia estar passando próximo a um rio e um enorme anzol emergiria ansioso lhe fisgando pela boca. Arrastaria este débil mental para as profundezas e o deixaria se debater até a morte por asfixia.
É sobre a dor dos animais esta dissertação. As desculpas mais comuns nos levam a crer que os peixes não sentem dor. Uma imensidão de notícias torna a pesca atividade saudável e familiar. Mas experimente puxar um peixe de dentro do seu ambiente com um mortífero anzol e vê-lo debater-se até a exaustão. Verá, meu amigo, que até os animais desistem da vida. Chega um momento em que para de se debater, muito cansado, e se entrega ao seu destino sendo sufocado pela poluição humana. Eu não posso acreditar que os peixes pensam. Então por que lutam contra o anzol, se não sentem dor? Será que buscam desesperados a liberdade porque leram a carta política francesa? Ou ainda, será que mordem a isca porque invejam a estupidez dos pinces que infestam os corpos dos homens? Não, nenhuma destas idéias corrobora com a lógica natural. Os peixes sentem dor e muitas vezes, buscando escapar daqueles inconvenientes arames em suas bocas debatem-se até a morte.
Não pense nestes seres como apenas reserva natural posta à disposição do nosso prazer e gozo. Não quero saber se as baleias choram ou se os macacos aprendem lógica. Isso, de fato, não se assevera importante. Mas preciso fazer uma análise quanto ao fato de amarrando um cavalo pelo pescoço com uma corda poder trazê-lo facilmente. Então por que não é tão fácil com os peixes, se eles não sentem dor?
Dúvida profunda desdenha da minha alma pouco humana quando penso no contrário. Um homem poderia estar passando próximo a um rio e um enorme anzol emergiria ansioso lhe fisgando pela boca. Arrastaria este débil mental para as profundezas e o deixaria se debater até a morte por asfixia.
OS DOIS LADOS DA MOEDA
Naquele dia
fui ao médico com o intuito de curar o espírito. O fato é que na faculdade
senti dores horríveis no peito e já sabia, o fim era certo. As paredes na sala
de espera eram verdes. Tudo que eu não podia ver, aquela cor túrgida lembrava a
morte com sua foice dourada. Uma sombra passava vasculhando os diplomas médicos
na parede. Fiquei pensando de onde vinha. Será que todos a estão vendo? Uma
velha gorda com vigorosas pelancas despencando dos braços parecia não perceber
nada. Estava vestida de preto e me fez pensar naquela cor justo naquele lugar.
Agora era a sombra estranha na parede e a cor do vestido daquela mulher. Outras
pessoas estavam sentadas também, todas de olhos baixos. A pilha de revistas na
mesinha de centro não despertou a curiosidade de ninguém. Quando cheguei ainda
era bastante cedo e as horas demoraram a passar, mas o médico somente foi me
atender às quatro horas, exatamente três
horas depois que cheguei.
Detalhes a
parte deste miserável encontro ele me disse que teria apenas mais cinco dias de
vida. Não me foi surpresa esta fatídica notícia. Como já disse queria cura para
o espírito, pois já há algum tempo estava sendo torturado pela maligna idéia de
morrer sem ser diagnosticado. Pois agora já sabia. Assim o meu medo se encerra. Saí do nosocômio mais
leve. Para alguns homens talvez o fardo fosse dos mais pesados. Este não era o
meu caso. Sabia já há muito tempo que não era feliz. Cultuava uma mulher muito
jovem e bela. Sabia naquela época o absurdo que seria nosso relacionamento. Era
vinte anos mais velho e era branco, a pele e os cabelos. Ao passo que a linda
fêmea tinha a pele negra e o corpo esplendoroso e possuía ainda vinte e poucos
anos. Quando a conheci era menina jogando bola no meio da rua. Naquela época
não me despertou interesse algum. Todavia, depois que voltei da viagem à Bahia,
onde estive visitando uma tia doente de
quem cuidei até a morte poucos meses atrás, não pude acreditar em tamanha
transformação. A pequena garota, filha do compadre Olavo, tornou-se a mais bela
dama daqueles arredores de Brasília.
Passei
diversas vezes na sua casa, sempre com a desculpa de procurar o Olavo. Falar de
futebol, política ou mesmo apenas para tomar o delicioso café, afinal eu era
sozinho e nunca fazia café em minha casa. Sim, ficamos amigos. Tanto que às
vezes ia deixá-la na faculdade, onde estudava direito. Ficamos assim durante
anos, nos encontrando na rua, nos mercados, ou em sua casa. Sempre, eu era o
fausto, amigo de seu pai. Nunca dela. Mas isso não me entristecia, não queria
de fato ser seu amigo. Caso isso acontecesse todos os meus planos poderia cair
por terra. Acredito que me considerasse
velho. Porém sempre ao passar de carro abria a porta e ela se jogava no banco do
carona. Ao passar as marchas roçava levemente os meus dedos na sua perna
maravilhosamente lisa. Ao carregar os meus olhos até os seus não encontrava
nada. Parecia não sentir minha ousada carícia ou era bem dissimulada.
Deixemos a
pequena para falar um pouco da sorte que sempre me acompanhou. Na minha sombra
sempre esteve um urubu. A ave de rapina não me largava. Tudo que fazia era logo
frustrado. Em concursos passava com as
melhores notas, todavia nunca era chamado. Nos dias dos meus fabulosos
encontros, quando elas aceitavam, as moças sempre estavam menstruadas e a noite
acabava logo cedo. Além de que por um motivo ou outro meu carro sempre me
deixava no prego. É, meus amigos, o meu pão sempre caia com a manteiga para
baixo.
Perdi os meus
pais muito cedo e fui levado por uma amiga de minha mãe para morar com ela. A
coitada não tinha dinheiro, então, acabava por se prostituir para nos
alimentar. Não era aquela prostituição oficial, ela namorava por dinheiro.
Havia os critérios: se andasse a pé só poderia beijar, se andasse de carro,
poderia passar a mão, se andasse de carro e fizesse as compras poderia ir mais
longe. Um namorado vivia lhe dizendo coisas absurdas sobre suas atitudes. O
mancebo chegava sempre bêbado, nunca trazia nada, mas sempre dormia em sua
cama. Pela manhã a espancava e me dava cascudos depois se ia. Apanhando de um e
de outro dos seus namorados, resolvi sair de casa. Dormi aquele dia na mesma
rua esperando ser encontrado. A fome me atacou e comi dos restos encontrados
pelo chão. A noite se foi e ninguém gritou meu nome. Desta forma parti para a
vida, sendo preso em reformatórios para menores infratores até conhecer a
glória.
Gloria era uma
artista plástica, porra louca, que me tomou das mãos dos policiais num dia que
roubei uns pães numa padaria. Ela pagou o produto e me pois em seu carro.
Levou-me para o seu ateliê. Eram meus quinze anos, não vou me esquecer, ela
tirou minha roupa, mas só queria me pintar. Assim foi durante dois anos, nunca
me tocou. Também, não era bonita, embora gozasse de simpatia fascinante, talvez
por sua inteligência. Foi talvez nesta data onde comecei a jogar constantemente
na loto, mega-sena, loteria esportiva e toda a sorte de jogos que só poderiam
ser de azar. Ganhava alguns trocados de minha protetora e os destruía nesta
tentativa de mudar de vida.
Um dia entrei
numa galeria no centro da cidade e não me vi nos quadros, embora fosse eu que
estava desenhado em todos eles. Em um eu era um anjo, noutro era um demônio
gargalhando num fogo eterno. Mas as pessoas também não me reconheceram e saí do
recinto frustrado como uma goiaba cheia de furos por onde a luz se recusa a
entrar. Quando voltei para casa já tarde da noite divisei luzes na sala ampla
onde gloria pintava suas telas. Olhei por uma fresta da porta e vi um garoto
pouco mais novo que eu pousando. Meu olho buscou um pouco mais no ambiente e
encontrou a pintora tecendo incontáveis elogios àquela figura. Recordei, então,
a pouca satisfação com o meu desempenho. Não foram poucas as vezes em que ela
chamou-me a atenção dizendo ser eu muito desleixado. Recolhi algumas coisas que
já me pertenciam e mais uma vez cortei raízes.
A minha vida
tem sido assim, vôos sempre rasantes
vasculhando o lixo deixado pelos outros. A partir deste momento o companheiro
já pode perceber quão baixo provavelmente era minha auto-estima. Acordava no
meio da noite sentindo aquele frio gelado percorrer minha espinha dorsal. Era
como água gelada descendo pelo pescoço. Buscava uma cápsula onde pudesse me
encaixar, mas não encontrava.
Agora
estava ali caminhando por uma rua que
nunca terminava. Os carros jogados em fila dupla sugeriam uma festa ou um
evento qualquer onde se as pessoas não estavam bêbadas, chegaram muito
atrasadas. Não sabia se havia vindo ao médico de carro ou se foi a pé. Na
verdade não sabia de nada. A sensação era de vazio total, como os santos. Não pensava também em
morrer, como seria o natural, o
diagnóstico foi de que teria apenas alguns dias de vida. Seria compreensivo que
não passasse essas últimas horas com idéias existencialistas esfarrapadas. As
minhas pernas iam me levando para os lugares que elas escolhiam, um beco, uma
praça, uma padaria onde tomei um suco que parecia estragado, mas que não mais
me faria mal. Estranha essa sensação de imortalidade quando vamos morrer. Eu
poderia ingerir veneno, ele não me faria mal. Já havia sido sentenciado, no
livro da vida, eu estava morto.
No entanto,
hábitos são hábitos, e entrei numa loteria pequenina onde se dizia que a
mega-sena estava acumulada em trinta milhões. Já fazia muitos anos que jogava
aqueles mesmos números. Eles passeavam pelo meu cérebro sem sentido. Seis
números azarados, nunca sequer apareceram na lista dos premiados. Entrei na
fila, estava desmotivado. Entrei por entrar. Uma senhora gorda me pediu uma
opinião. Sugeri os números, os mesmos que iria jogar. Pensei: “se ela soubesse
o quanto sou azarado, talvez não me pedisse ajuda.” Estranhamente ela insistiu
para pagar o meu bilhete. Disse que
assim a sorte não a abandonaria. O gesto foi no mínimo novidade para mim, pois
ninguém nunca me deu sequer um obrigado. Coloquei aquele bilhete no bolso e saí
novamente a perambular sem destino. Podia ouvir no meu cérebro uma música
distante, como acordes de uma harpa santa, dedilhada de forma maravilhosa.
Talvez fosse a hora de me despedir de quem eu gostava. Desta forma voltei à
casa do Olavo.
O velho amigo
não se encontrava, mas não era ele que queria ver. Quem me atendeu foi a diva
dos meus sonhos, estava de toalha porque estava no banho. Pediu que entrasse e
deixou aquele rastro de perfume na água escorrida de seu corpo ao voltar ao
banheiro. Naquele dia pude dizer dos meus sentimentos, já que iria morrer, não
teria sentido amarrar no fundo de minha alma pedras tão pesadas. Para minha
surpresa ela caiu em meus braços e como num sonho confessou seus sentimentos,
tão fortes quanto os meus. As próximas horas foram tão rápidas e fulgurantes
que é impossível descrevê-las. Muitas vidas mergulharam dentro de mim. O gosto
amargo da solidão lacerante foi substituído por essência de lavanda. E por algum tempo esqueci o meu infortúnio.
Quando olhei pela janela, vi um enorme urubu alçando vôo do beco. Pensei, “vai
desgraçar outro ave medonha!”.
Os próximos
dias desenharam-se saltitantes a minha
frente, foram os mais felizes da minha vida. Não sei por que, mas tudo estava dando
certo, acordava pela manhã e saia para fazer uma caminhada no park da cidade.
As pessoas, sempre gentis passavam por mim desconfiadas de minha felicidade que
transbordava. Os bares tocavam sempre minha música, levando todos a sentirem um
pouco do que agora eu sentia. A bela Carmem ficou como uma ponte de safena
prolongando minha vida. Foi na quarta-feira assistindo ao jornal que vi. Tudo
havia mudado, apenas dois ganhadores levaram o prêmio da mega-sena. Quando
disseram os números premiados, vi dançar em meu cérebro os números do meu azar.
Sim, senhores, aqueles velhos números foi o azarão daquele sorteio, somente
eles. Estava milionário, mas já preparava para morrer.
Com todo aquele dinheiro eu não poderia perder
tempo, pois para mim nada valia. Preparei então um grande casamento e me casei
com Carmem. Tendo sido abençoados pelo pai da moça fomos viajar pela Europa, no
fundo de mim um medo absurdo da morte. Aquela mulher, como disse antes, era
minha ponte de safena. Seis meses já
haviam passados e a morte não vinha. Era como um presente, ainda maior que todo
aquele dinheiro. Voltamos ao Brasil, por receber a notícia de que Olavo estava
muito doente. Inconsolável Carmem não pode mais ver o pai com vida. Mais uma
vez a lição da vida: os outros estavam indo e eu forte estava ali. Sugava toda
a vida que podia daquela jovem mulher. Naqueles dias fiquei em casa vendo-a
triste ao piano, esguia e bonita. Não poderia ficar mais bonita. Assim,
carregada de sentimentos, era uma deusa irresistível. Meu coração gritava, é minha!
Mas na
primavera seguinte perdi Carmem. O azar estava de volta. Carmem foi atropelada
por uma carroça. Todo aquele dinheiro não pode salvá-la da tristeza que tomou
seu coração, da falta do pai. Distraída, não viu a carroça. Perdi minha Carmem e estava mais vivo que nunca.
Pela primeira
vez pensei em tentar a morte. Mas vomitei todos os quinze comprimidos que tomei
naquela noite. E no outro dia olhando o espelho, pensei no quanto fui imbecil.
Comprei uma bela arma e voltava a pé para casa quando vi três homens tentando
estuprar uma moça. A arma coçou na minha cintura. Fui para cima e como um
cavalheiro, a dura custa, salvei aquela donzela em perigo. Digo a dura custa
porque não usei a arma, fui espancado e levaram-na com eles. Quando dei por mim
estava numa sala muito pobre. Em minha
frente uma senhora numa cadeira de rodas, bastante velha, conversava.
Agradecia-me, não sei por quê. Quando as idéias clarearam pude ver a moça da
rua sorrindo, com um copo na mão. Estava limpando minhas feridas e granjeando
meu feito heróico.
Comecei uma
coleção dos quadros e gloria que me tinha como inspiração. Busquei em todos os
lugares, montando meu esquife, meu templo, queria estar a contemplação de meus
semelhantes, pois já sabia que a morte não me encontrava. Gloria já havia
morrido e seus quadros tornaram uma febre. As galerias a disputavam, pequenos
desenhos tinham preço absurdo e eu estava ali para presenciar tudo. Como um
vigia, me foi dado esse azar, ver nas últimas horas os guerreiros quedarem ao
meu redor.
Maria, a
menina que salvei, por ingenuidade ou mesmo amor, estava sempre por ali.
Voltava sempre para vê-la e cuidava dela e de sua pobre mãe. Mas nunca tirava
da cabeça o sorriso de Carmem correndo no parque da cidade ao meu lado.
Certamente não me era dado amar novamente. O tempo do meu tempo já havia ido,
não era um ser vivo, era uma testemunha das coisas mais medonhas da alma.
Nos meus
sonhos um senhor de bicicleta estacionava na ponta de uma rua, sempre
aguardando uma moça negra que fugia dele. Do seu lado um leão negro lambia os
lábios. Nova noite e novamente o sonho com aquele homem e leão, que ao final se
fundiam num só.
Um belo dia,
acordei, completamente assustado na madrugada, o corpo coberto por suor. O
peito dolorido. Aquele quarto imenso, meus diversos retratos gargalhando nas
paredes. Quando levantei, pela manhã, os homens vieram para recolher os móveis.
Eu estava falido. De alguma forma dilapidei todo o patrimônio em viagens e
obras de arte, sempre pensando que logo morreria, mas a morte nunca veio. Veio
a sorte, chegou novamente o azar, o medo. A morte nunca veio. Mas hoje é dia de
visita, neste fétido asilo, sei que logo chegará Maria com uma cesta de doces e
afagos de seus dedos finos.
O INTERCÂMBIO
Descobriu que a outra
tinha entrado em um programa de intercâmbio. Para aprender outra língua. Tinha
agora um homem negro andando pela casa, completamente nu.
Ela, que estudava
francês ficou pensando naquilo. E o homenzarrão passava de um lado a outro com
as coisas balançando. A cunhada parecia não importar, dizia que estava
aprendendo com facilidade a língua a que se propunha. Quanto à nudez, achou que
fosse cultural, não teve coragem de perguntar.
Foi para casa e ficou
sonhando. “Ora, se a cunhada tinha um, por que ela não poderia?” Resolveu
pedir o seu. Não falou nada para o marido, porque, afinal, era muito caro e não
queria assustá-lo.
Três dias depois chegou
a caixa. Parecia uma geladeira e não despertou a curiosidade dos vizinhos.
Ficou no meio da sala. Zuleica sentada no sofá não sabia o que fazer. Tinha até
medo de abrir. E se ele estivesse pelado? Será que o marido poderia lhe
emprestar uma roupa. Melhor não. Lembrou-se do negro na casa da cunhada, era um
pecado vesti-lo.
Decidiu que era melhor
abrir. Afinal, lá dentro tinha um homem cansado. Havia atravessado o oceano e
deveria precisar descansar. Foi tirando as tiras de papelão apreensiva, estava
bem empacotado. A surpresa não foi pouca quando escutou a voz dentro da caixa.
─ Vamos, madame, rebola!
Era um português de
nordestino. Daqueles bem brasileiros. Terminou de desembrulhar o produto, mas
ficou desconfiada.
Lá de dentro saiu um
homem baixo que de negro não tinha nada. Embora estivesse nu, Zuleica ficou
decepcionada. Não sabia como devolver o produto, mas foi a primeira coisa que
pensou.
Tinha alguma coisa de
falso nele. Já chegou com um maço de cigarros na mão e a caixa onde veio era
uma catinga só.
A mulher passou a
desconfiar de que fosse um perigoso bandido. Naquele dia não quis saber de
treinar a língua francesa. O baixinho, por outro lado, também não se apresentou
para o ofício, sentou no sofá, ajeitou os bagos e pegou o controle da tv tela
plana.
Da cozinha fazendo o
almoço escutava a zoada. Volta e meia ele passava, com as coisa penduradas,
aquela cara previsível nos livros de Lombroso, bebia água e voltava para a
sala. Às vezes entrava no banheiro, fazia uma zoada medonha de xixi na água do
vazo. Essa era a rotina.
O marido chegou e ele
estava lá. Peladão. E o pior: com o controle na mão. O marido voltou vermelho
para a cozinha, por onde havia entrado.
─ Zuleica, tem um homem
pelado lá na sala!
─ Calma, amor, eu
explico!
E ela falou do programa
de intercâmbio. Mas também falou para ele da sua frustação. Não que estava
esperando um negro alto e bonito, falou para o marido que estava desconfiada
daquele homem. O português dele era muito correto para um estrangeiro. Achava
que iria aprontar.
De fato, o marido
também ficou desconfiado. Colocou uma faca na cintura, mas a mulher o
desestimulou de qualquer besteira. Não sabiam o quanto poderia ser perigoso.
Aquele homem parecia ser muito frio e o mataria com as próprias mãos.
Ficaram presos, de
certa forma, tinham medo de o homem pegar a tv de tela plana, por isso não
saiam de casa. Os três ficavam vendo televisão e nada das aulas de francês
começar. Zuleica nem queria. Esqueceu-se das aulas de francês, só pensava em se
ver livre daquele homem esquisito.
Já tinha uma semana sem
ir trabalhar o marido. O homem passava a tarde dormindo dentro da caixa. Era um
folgado. Na repartição pensavam que Oscar, como era chamado o marido de
Zuleica, tinha morrido ou coisa parecida. Foi, então, uma comitiva para a casa
deles. Até o Zacarias, com quem não se dava muito bem, chegou todo preocupado.
Logo na entrada, deu um pulo para trás. Deparou-se com o homem nu.
─ Opa, o que é isso
Ceará!
Depois de tudo
explicado em sutis cochichos pelos cantos, estavam todos solidários ao problema
e o estrangeiro nem tchum. Até os
vizinhos já sabiam do homem nu da Zuleica. Estavam achando uma pouca vergonha.
Ficavam fazendo de conta que varriam a rua só para desgraçar a vida da pobre.
Diziam:
─ O marido tem um jeito
de corno!
─ Não tem?
Foi aí que o Zacarias
teve a ideia. Subiu na telha e ficou correndo lá encima. Fazendo zoada, como
zoada de gato namorando no telhado. Nada. Nem o fez bocejar.
Como Zuleica não era de
muita conversa foi para a cozinha passar um café, o primeiro a encher a xícara
foi o atrevido do estrangeiro. Deslizou por entre a multidão e saiu chupando o
café, fazendo aquele barulho horrível, que Zuleica tanto odiava. Era igual
quando o marido comia sopa de macarrão, chupava fazendo zoada, deus me livra,
pensava ela.
Bom, o fato é que todos
estavam na cozinha bebendo café e não a viram sair de mansinho. Foi direto lá
na caixa. O poliglota estava refastelando, um ronco gostoso depois de um
cafezinho. Quando acordou estava todo amarrado. A mulher ao seu redor com os punhos
cerrados. Saiu água dos olhos do moço, mas ela bateu nele mesmo assim. Não
parecia tão mau. Encolhido e pelado lembrava uma ratazana molhada.
Quando o povo percebeu,
Zuleica já tinha feito o serviço. Agora era só embalar e mandar de volta
através do programa televisivo “de volta para minha terra”.
A mulher não se
esqueceu da despedida, Au revoir.
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